Dados editoriais
Em linha com a agitação política e social provocada pelo regicídio de Fevereiro de 1908, a propaganda anarquista começou a intensificar-se, continuando o impulso iniciado anos antes com a publicação de uma série de revistas que, contudo, tinham conhecido uma existência efémera. Depois do desaparecimento da Revista Livre, de Campos Lima, e da Luz e Vida, de Ângelo Jorge, o espaço doutrinário foi ocupado pelo periódico Novos Horizontes, cujo primeiro número foi editado em 1906. No entanto, a revista de propaganda e crítica também teria vida curta e findaria a sua publicação em Maio de 1908. Só com o surgimento de A Sementeira, em Setembro de 1908, é que o anarquismo português passou a contar com um órgão duradouro e com a coerência teórica necessária para se entregar à tarefa de propagandear a Ideia.
A aventura editorial de A Sementeira iniciou-se antes do lançamento do primeiro número da revista. Em 1906, o arsenalista Hilário Marques tinha já sido o principal animador do grupo Acção Directa - responsável pela edição de brochuras de Malatesta, Cláudio de Lisle e Kropotkin -, que se viria a dissolver no grupo editor de A Sementeira, dois anos depois. O nascimento da publicação mensal ilustrada de crítica e sociologia dava o seguimento natural a esta empresa e aproveitava a desocupação do espaço destinado à imprensa de orientação anarquista, após o desaparecimento da Novos Horizontes, para iniciar um trajecto de mais de uma década.
O principal dinamizador da revista foi o próprio Marques, proprietário de A Sementeira, coordenador do projecto e director durante toda a sua existência. Nestes encargos administrativos, foi auxiliado pelo tipógrafo Lima da Costa, que, ao que tudo indica, terá sido não só o responsável pela composição gráfica da revista, como um importante suporte na sua direcção durante o primeiro período em que Hilário foi forçado a deslocar-se para Glasgow, com o propósito de fiscalizar a construção de propulsores de dois contratorpedeiros que estavam a ser construídos no Arsenal da Marinha, entre 1911 e 1912. As tarefas editoriais foram desempenhadas pelo farmacêutico Ismael Pimentel a partir do n.º 27, de Novembro de 1910, que também colaborou activamente na elaboração de artigos doutrinários, sob o pseudónimo de Ismaelita. Mas a primeira série de A Sementeira ficou ainda marcada pela importante actividade redactorial de Gregório Nazianzeno de Vasconcelos, regressado do Brasil no final de Abril de 1911, e que de imediato se envolveu na feitura da revista. Sob os pseudónimos Zeno Vaz, Fernan-Vaz e, claro, Neno Vasco, colaborou em 20 dos 22 números publicados entre Maio de 1911 e Fevereiro de 1913, data que marcou o fim da primeira série, após uma série de 52 meses de publicação, apenas interrompida entre Agosto e Outubro de 1911 e Janeiro e Março de 1912.
O primeiro interregno da edição de A Sementeira pode ter sido instigado pela instabilidade naturalmente provocada pela partida do seu director para Glasgow, poucos meses antes. A interrupção serviu, porém, para definir a descontinuação da paginação iniciada no primeiro número e a preparação do primeiro volume da revista, que foi constituído pelos seus primeiros três anos. Com o n.º 37, deram-se alterações importantes na revista: a paginação reiniciou-se e o preço avulso baixou para metade, de 40 para 20 réis. Esta diminuição de valor deveu-se, provavelmente, à decisão de terminar a publicação dos suplementos ilustrados que acompanhavam os artigos biográficos das páginas centrais de cada número.
A segunda intermissão ficou a dever-se à violência policial exercida sobre os militantes avançados, logo após a greve geral de Janeiro de 1912. Os editores e redactores da revista foram impedidos de publicar o n.º 41 atempadamente, mas da convulsão social provocada pela paralisação operária e pela consequente repressão governamental nasceu uma nova iniciativa de propaganda, que se iria desenvolver a partir da sede administrativa de A Sementeira. Com o fortalecimento das afinidades entre Neno Vasco, recém-chegado a Lisboa, e Lima da Costa, durante o movimento grevista, surgiu a intenção de se iniciar a publicação de um conjunto de panfletos anarquistas e sindicalistas. De um contexto reivindicativo nasceu o grupo A Brochura Social, que iria ter um papel importante a desempenhar alguns meses mais tarde, durante o período em que a revista esteve suspensa.
Após o retorno a Lisboa do seu fundador, no final de Abril, A Sementeira depara-se com problemas de financiamento, devido ao constante atraso no pagamento das assinaturas. Apesar dos apelos que foram lançados nas páginas da revista, esta questão continuaria e seria uma das causas para a sua suspensão, em Fevereiro de 1913. Mas não se tratou da única razão: o regresso de Hilário Marques revelou-se temporário, voltando a Glasgow em meados de Março, devido aos seus compromissos profissionais. Sem o seu principal animador e com o provável afastamento de Lima da Costa, que se terá incompatibilizado com Neno Vasco por causa da administração deficiente de A Brochura Social, a revista foi interrompida após 52 números publicados, uma colecção completa de 292 páginas e outra incompleta de 128.
Sem a publicação de A Sementeira, a actividade editorial do seu grupo estagnou, com a excepção da publicação de duas brochuras. Em 1914 editou-se o panfleto de Landauer sobre A Social Democracia na Alemanha e no ano seguinte é lançado Em tempo de eleições, de Malatesta, cuja primeira edição tinha sido obra do grupo Acção Directa. Assim, a acção propagandística foi garantida pelo grupo A Brochura Social, que em Junho de 1914 apresentou uma tese sobre a relação entre anarquistas e movimento operário na Conferência Anarquista da Região Sul. Com a saída de Lima da Costa, as tarefas de administração começaram a ser desempenhadas por Aurélio Quintanilha, com o auxílio do advogado Sobral de Campos. O curto catálogo editorial do grupo leva a crer, contudo, que essa gestão também não foi bem sucedida e o grupo desintegrar-se-ia nesse mesmo ano. Entretanto, vão surgindo as primeiras notícias que dão como inevitável o ressurgimento de A Sementeira, mas tal só viria a confirmar-se em Janeiro de 1916.
Com o relançamento da revista, a equipa administrativa manteve-se unida: ao lado do director Hilário Marques, regressado de Glasgow, continuava Pimentel, com funções editoriais. O preço de 2 centavos (20 réis antigos) permanecia o mesmo do final da primeira série, mas este seria um dos poucos elementos intocados para o início da nova série. A principal alteração fez-se sentir no formato de A Sementeira, que reduz os 22x33 cm para 16x25 cm, aumentando as 8 páginas por número para 16. Com o início da nova série, a redacção e administração abandonaram a antiga casa do director, o "cacifo" na Rua da Barroca, onde se instalaram no início de 1909 (depois de uma curta passagem pelo 1º andar do 44 da Rua das Salgadeiras), deslocando-se para a taberna Feijão Encarnado, no Cais do Sodré, onde permaneceram até Agosto de 1919, quando a revista cessou a sua actividade. Também a impressão deixou de se efectuar na tipografia A Publicidade, na Rua do Diário de Notícias, passando a realizar-se numa oficina situada na Rua do Poço dos Negros, n.º 81, onde também era composto o Germinal.
Todavia, no dealbar de 1916, o contexto económico e político não parecia beneficiar a continuação desta aventura editorial. As finanças da revista continuavam numa situação bastante difícil e dependiam do pagamento atempado das assinaturas, dos donativos das comunidades de emigrantes em New Bedford e no Brasil e do provável apoio do grupo Aurora Social, que editou A Aurora, no Porto, e com quem Hilário Marques sempre manteve uma relação muito próxima. Também a carestia do papel, provocada pela Grande Guerra, contribuiu para que o preço unitário da revista aumentasse para 3 centavos, a partir do n.º 25, de Janeiro de 1918, número no qual é reiniciada a paginação. Desta forma, fechava-se a terceira colecção de A Sementeira, que correspondia aos últimos dois anos de publicação, com um total de 384 páginas. Esta solução serviu, muito provavelmente, para aumentar as receitas do grupo editorial, através da venda ao público de um volume com índice e ainda com uma encadernação cuidada.
As dificuldades da edição também eram notadas nos conteúdos publicados, tanto pela colaboração mais irregular de Neno Vasco, como pela frequência com que se encontravam espaços vazios na revista, entre Maio de 1916 e Junho de 1917. Era a censura a fazer-se sentir sobre um periódico de cariz anti-intervencionista. A supressão de 9 páginas e meia do número que estava previsto sair em Novembro de 1918 foi a causa apresentada pelo editor para justificar a interrupção da publicação entre Outubro e Fevereiro de 1919. Só após a abolição da censura é que A Sementeira reapareceria, procedendo a alterações no corpo editorial: Pimentel foi afastado das suas funções por alegadamente ter alinhado com fregueses monárquicos da sua farmácia nas críticas ao regime republicano. Marques passava a acumular o cargo de director com o de editor até ao derradeiro número da revista, que chegou de forma imprevista e sem aviso em Agosto. Os n.ºs 25 a 41, que totalizavam 272 páginas, foram encadernados para a quarta e última colecção deste periódico.
Com o fim definitivo desta publicação, Hilário Marques dedicou-se ao jornal operário que tinha ajudado a fundar em Fevereiro. Tratava-se de A Batalha, à época órgão na imprensa da União Operária Nacional. O trabalho propagandístico de A Sementeira continuou, publicando cinco brochuras entre 1919 e 1923, muito provavelmente pelo esforço solitário do seu grande animador, que já não pôde contar com a ajuda de Neno Vasco para a realização dessa tarefa. A revista já não regressaria, pois o espaço doutrinário fora já ocupado pelo diário que iria marcar a orientação do anarquismo português na década seguinte. A década anterior, porém, definiu-se nas páginas da revista dinamizada pela impressionante energia de Marques. Foi este invulgar ânimo do arsenalista que fez de A Sementeira o periódico de maior duração e prestígio, quando comparado às demais revistas anarquistas do seu tempo.
António Baião