A Tradição
Durante os dezasseis anos que distaram entre a Implantação da República e o golpe militar de 1926, que abriu portas ao surgimento de uma ditadura duradoura, muitos foram os tumultos sociais e políticos que pediram aos homens ilustres um empenhamento pessoal na vida pública de então. As publicações periódicas dessa Primeira República são assim verdadeiros espelhos das várias lutas doutrinário-partidárias e dos conflitos entre personalidades eminentes.
A Tradição é, nesse sentido, um híbrido, uma publicação cujo subtítulo claramente define o conteúdo (e a sua época): "Bimensário Integralista, Politico, Literário e Artístico". O seu nome aponta, de resto, numa direcção concreta: aqui respeitam-se os valores de um antigo regime. Não se trata assim de uma típica revista modernista, com uma gramática visual, logo a começar pela capa, que tenha uma linha muito identificável (na verdade, a capa é inexistente neste folheto).
A sua filiação política é clara desde o primeiro texto, aliás, da autoria de Alberto Monsaraz, um integralista famoso e que lutara pela defesa da monarquia, mesmo após o 5 de Outubro de 1910, onde o 2º Conde de Monsaraz elogia a revista, posicionando-a no Integralismo Lusitano, e falando do seu director nos seguintes modos: "A Tradição, redigida por estudantes, entre os quais Cordeiro Ribeiro [que] já conta, com menos de 20 anos, 5 prisões na defesa das suas crenças, é mais uma decisiva garantia de que não são vãs as nossas esperanças, nem esta propaganda de impenitentes reaccionários tem sido ineficaz." (p. 4).
Como também é hábito em publicações desta estirpe, as suas páginas servem declaradamente para promover os seus promotores, isto é, os elementos da direcção, sem quaisquer escrúpulos. Logo na página 5, numa secção intitulada "Echos d'arte", onde se referem eventos e publicações importantes, Alfredo de Freitas Branco, redactor-chefe de A Tradição, feroz opositor do regime republicano e que assinaria vários livros com o seu título aristocrático (Visconde de Porto Novo), fala da Conferência Futurista, de Almada Negreiros, de forma muito dura ("uma conferência futurista, cuja apreciação não tem aqui cabimento visto o futurismo não passar de uma 'blague'..."). No momento seguinte, Armando da Silva, o editor da revista, publica uma crítica muito favorável ao mais recente livro de Freitas Branco (Charcos, Editora Casa Ventura Abrantes). Uma verdadeira contradição quando a primeira crítica apresentada em "Echos d'arte" seria precisamente contra um concerto de Ruy Coelho, nem sequer falando do concerto propriamente dito, e acusando-o de falta de "idoneidade moral"...
Por outro lado, e no que toca ainda à recensão literária, A Tradição, também como seria hábito nas publicações periódicas coevas, refere os títulos recebidos e recentemente publicados. Neste primeiro número fala-se da obra de João Cabral do Nascimento que Fernando Pessoa já referira no último texto de Exílio (1916) onde teoriza o Sensacionismo, As três princesas mortas num palácio em ruínas. Mais uma vez, tal atitude constituía um favorecimento a um autor integralista, ainda para mais se pensarmos que é ele que vai substituir Alfredo de Freitas Branco no segundo e último número da revista, quando o Visconde de Porto Novo decide alistar-se para combater na 1ª Grande Guerra Mundial. Nesse mesmo número inicial (15 de Maio de 1917), o único texto literário da revista é da sua autoria, tratando-se de um soneto conservador, sobre "A Voz Longínqua da Raça". E como seria de esperar, é nesse segundo número (de 9 de Junho de 1917) que Armando da Silva escreve sobre o livro do novo redactor-chefe. De notar ainda que nesse número são publicados mais textos literários, não só do redactor principal (Sonetilhos), mas também de Afonso Lopes Vieira, um escritor consagrado nesse período, em cujas páginas de A Tradição aparece ainda uma recensão ao seu recente Ilhas de Bruma.
No que toca ao aspecto visual da revista, é de assinalar a inexistência de qualquer ilustração, o que mais confirma o carácter austero e político da publicação, apenas apresentando, logo no verso da capa, a efígie do Integralismo Lusitano, com o seu mote: um pelicano e a inscrição "Pola Grei e Pola Lei".
Ricardo Marques