A cultura como política

A Sociedade tem por fim promover a maior cultura do povo português, por meio da conferência, do manifesto, da revista, do livro, da biblioteca, da escola, etc.
(Estatuto da Renascença Portuguesa, art.º 2.º)

A Vida Portuguesa, quinzenário de inquérito à vida nacional, publicado entre Outubro de 1912 e Novembro de 1915, apresentou um título genérico mas invulgarmente apropriado, pois ocupou-se, sem tergiversação, das questões tidas por maiores na condição nacional e do programa cívico e prático de ressurgimento colectivo.

Jaime Cortesão, director, Álvaro Pinto, secretário da redacção e administrador, Costa Júnior, editor, e a Sociedade Renascença Portuguesa, proprietária, distinguiram-se, por registarem meticulosamente, neste periódico elevado ao estatuto de boletim, os desígnios, a composição, os órgãos e as iniciativas de vulto que definiram a razão de ser e determinaram o percurso da sua obra comum.

Apesar do repositório constituído – verdadeiro auto-retrato do movimento cívico de homens de letras, das ciências e das artes mais representativo da primeira década da República – revelar uma composição diversificada, é possível observá-lo a partir de três eixos fundamentais, coincidentes, aliás, com secções regulares da publicação: a legitimação ínsita, o inquérito à realidade nacional e a obra de difusão cultural.

A autoridade própria resultaria da consciência esclarecida acerca da natureza e do destino da condição portuguesa, de que os articulistas se julgavam os portadores e os arautos. Entre as convicções de fundo, a noção clássica e ritual da renascença prevalecia: urgiria regressar às origens nacionais, à índole primordial e genuína, substantivada na noção antropológica de raça, pois só o retorno ao íntimo matricial possibilitaria vencer a heteronomia e a decadência seculares, cumprir o Portugal contemporâneo, vislumbrar a plenitude como resposta a vocativo edénico próprio.

Embora o pressuposto de que um novo ideal colectivo, aglutinador do ressurgimento nacional, não podia deixar de mergulhar as raízes no passado e na renovação dos estudos históricos tenha sido frequentemente recordado, nomeadamente por Jaime Cortesão, é de sublinhar que a evocação dos mitemas nacionalistas se apresentou, na Vida Portuguesa, esparsa e residual. Simultaneamente, a difusão cultural que o quinzenário deu a conhecer contemplou a generalidade do saber contemporâneo numa perspectiva universal, que não deixou de realçar a história e a literaturas nacionais, mas as excedeu com manifesta largueza de espírito.

Foi nesta abertura a perspectivas diferentes, num movimento que se queria de escala nacional, que a participação regular de pensadores que compartilhavam a primazia conferida ao problema da cultura entre as causas públicas, mas contrapunham a janela cosmopolita à lição nacionalista e o debate conceptual à profecia poética, encontrou lugar quer para consolidar esta afinidade implícita, quer para polemizar sobre as perspectivas doutrinárias e os conteúdos da sua concretização, quer para antecipar encontros subsequentes, com destaque para a concertação seareira entre Cortesão, Sérgio e Proença, e para a edição da fugaz e renascentista revista Princípio.

O que movia a generalidade destes jovens poetas e pensadores seria uma ética simultaneamente intelectual e republicana que unia saber e dever. Competir-lhes-ia retomar a missão contemporânea de promover o reencontro da nação consigo e com o seu tempo, e, assim, proporcionar o bem comum supremo da autodeterminação esclarecida, coesa e fecunda; desiderato que ditava tanto a obrigação democrática de elucidação e de promoção culturais da comunidade, tida por condição do fomento da cidadania emancipada e industriosa, quanto a tomada de posição face aos grandes desafios colectivos e, mesmo, civilizacionais, com destaque, no imediato, para a participação na Grande Guerra.

É de reconhecer que a Renascença Portuguesa interpretou, com brilho próprio, o estatuto conferido pelos tempos aos homens cultos e empenhados que intervinham na cidade em nome do foro que para si próprios constituíram, que sobrelevava acima dos constrangimentos e das vicissitudes do poder, mesmo quando este era encarado com a benevolência própria de quem simpatizava com a jovem ordem republicana.

Basta recordar as sequelas do caso Dreyfus, decisivas na cultura política do início do século XX, e o alento que emprestou aos desígnios cívicos cultos, materializado, por exemplo, na proliferação de universidades populares em França e na Europa, bem queridas do jovens renascentistas, para confirmar tanto o bom acolhimento dos imperativos apontados aos representantes do saber quanto dos meios destinados a satisfazê-los. A expectativa de as universidades populares se tornarem iniciativas concorridas e de chamarem a si o operariado, patente em numerosos artigos de fundo do quinzenário, só não é uma elucubração fantasiosa porque se alicerça no sucesso que estas conheceram em França, onde metade da população sindicalizada as frequentou.

Regressemos, porém, ao boletim A Vida Portuguesa e ao subtítulo que começou por exibir para observarmos o sentido geral das iniciativas culturais com que a associação a que serviu de memória procurou concretizar o seu fim estatutário.

Quando A Vida Portuguesa apresenta como subtítulo quinzenário de inquérito à vida nacional assinala exactamente o propósito de introduzir método no diagnóstico, no debate e na definição de soluções, racionalmente fundamentados, capazes de responder aos problemas maiores da comunidade nacional à luz do saber tido por constituído e pertinente.

A finalidade inicial e explícita da publicação consistiria, mesmo, na realização de quatro inquéritos, sobre os problemas religioso, educativo, social e económico, desdobrados em questões muito vastas, de enunciação claramente académica, a serem equacionados por outras tantas comissões específicas, constituídas por doze dirigentes e sócios da Renascença Portuguesa.

Às questões económicas foram dedicadas análises relativamente extensas, sobre a emigração, a indústria, a agricultura, o porto de Leixões, entre outros temas, enquanto o problema educativo também mereceu considerações regulares, em torno das universidades populares, do ensino universitário, do ensino teórico e prático, dos manuais, da educação da criança. Já às temáticas sociais e religiosas não foi conferida atenção original digna de nota.

É, ainda, de referir um lote relevante de artigos de vulgarização científica inseridos na revista – pois a publicação não se confinou à condição de boletim –, muitos dos quais com ilações práticas, mormente no domínio dos cuidados profilácticos.

Se no capítulo da produção de saber especializado sobre a realidade pátria os resultados se mostraram muito desiguais e avulsos, mesmo que se tomem em consideração outros contributos interessantes sobre temáticas convergentes, já a acção relatada no âmbito da divulgação dos saberes e das artes mostrou-se muito intensa, quer através dos cursos leccionados nas universidades populares, quer no plano editorial, quer, ainda, por intermédio de conferências, concertos e exposições.

A criação de universidades populares constituiu a primeira grande iniciativa de promoção cultural da Renascença Portuguesa, caso se exclua a edição de A Águia, órgão oficial do movimento a partir de Janeiro de 1912.

Jaime Cortesão dedicou mais de uma dezena de artigos à história, justificação e finalidades destas universidades informais de educação popular, ao mesmo tempo que insistiu na necessidade de se dirigirem, entre nós, ao conjunto da população. A ignorância entre diplomados e a impreparação cultural comum obrigariam a tomar o conjunto dos nacionais como destinatário. O operariado estava obviamente incluído, embora se viesse a mostrar receptivo às temáticas respeitantes à sua emancipação, como o curso sobre a Comuna de Paris leccionado por Cristiano de Carvalho, mas refractário às palestras de temática mais corrente, decalcadas, amiúdas vezes, do ensino oficial.

A Universidade Popular do Porto teve a sua sessão inaugural no teatro Águia de Ouro, em 9 de Junho de 1912. Seguiram-se-lhe a Universidade Popular de Coimbra, em cujo núcleo fundador Augusto Casimiro preponderou, e a Universidade Popular da Póvoa de Varzim, no final do mesmo ano. A Universidade Popular de Vila Real, devida à acção de Augusto Martins, iniciou os seus trabalhos no 1.º de Dezembro de 1913.

Como lhe competia, A Vida Portuguesa deu notícia pormenorizada destas inaugurações. Reproduziu, também, tanto os programas dos cursos ministrados quanto o resumo de algumas das sessões, pelo que a sua leitura deixa reconstituir com precisão o teor da cultura humanística, científica, artística e técnica divulgada, naturalmente resultante do compromisso entre os fins apontados e as boas vontades disponíveis.

Se é indiscutível que as figuras mobilizadas para leccionar os cursos mostraram ser conceituadas e ter interesses variados, mais difícil se torna, porém, apreciar os resultados obtidos. De qualquer modo, a leccionação regular da Universidade Popular do Porto parece contrastar com o funcionamento muito circunstancial das três restantes.

Um segundo âmbito da acção notável da Renascença Portuguesa consistiu na produção editorial intensa que levou a bom porto, patente, primeiro, no anúncio de títulos de autoria dos seus sócios e, depois, sob a forma de colecções com directores, temáticas e planos de publicação específicos. As últimas páginas do boletim, dedicadas à publicitação destas obras, impressas em tipografia própria, testemunham-no.

A consulta da lista de títulos publicados revela que a produção acompanhou, desde o início, a divulgação cultural, segundo uma orientação conforme ao programa geral do movimento, seja ao integrar edições das suas figuras maiores, seja por os autores da sua orla próxima aí se encontrarem publicados, seja, ainda, pela tradução de obras das letras e dos saberes universais.

A colecção "Biblioteca Lusitana", proposta por Alfredo Coelho de Magalhães em palestra na Universidade Popular do Porto e por si dirigida, conjuntamente com Jaime Cortesão, destinada a popularizar a leitura dos clássicos nacionais, representou uma primeira ordenação da actividade editorial, cuja recepção na imprensa A Vida Portuguesa transcreveu com satisfação e pormenor. Seguiram-se-lhe a "Biblioteca Infantil e Popular", a cargo de José Teixeira Rêgo, e a "Biblioteca de Educação", da responsabilidade de António Sérgio, que foram objecto, igualmente no boletim, de artigos e de referências numerosos.

Entre os títulos publicados pelas Edições Renascença Portuguesa, conta-se a Cartilha do Povo, com tiragem anunciada de cem mil exemplares, que pretendeu conferir expressão nacional à propaganda a favor da participação portuguesa na Grande Guerra. A adesão a este desígnio foi igualmente objecto de vários artigos de fundo, além de deliberação do Conselho de Administração da Renascença Portuguesa, tendente à constituição de uma Sociedade de Instrução Militar, inserta no boletim com o destaque próprio de uma primeira página integral.

Se A Águia, embora com vicissitudes significativas logo em 1916, e a associação de que foi o órgão sobreviveram à mobilização para a Flandres, já o mesmo não aconteceu com A Vida Portuguesa, que viu o seu director incluir-se entre os que voluntariamente partiram. Mais tarde, o poeta e historiador barbirruivo – figura pública de integridade e coragem exemplares – dará notícia, já não nas páginas da sua extinta A Vida Portuguesa, mas ainda nas Edições da Renascença Portuguesa, de uma experiência que saldou tanto pela vitória final quanto pelo acabrunhamento sidonista. Dias e circunstâncias vividos, aliás, com outros ilustres companheiros de letras e de armas de uma geração que definira, com inegável justiça, no próprio editorial de apresentação do quinzenário de inquérito à vida nacional, como "aguerrida, original, entusiástica e voluntariosa".

Luís Andrade