Sociedade Futura

A partir da segunda metade do século XIX e especialmente nos anos do século XX que antecederam a implantação do regime republicano em Portugal, assistiu-se aqui à crescente edição, direcção e divulgação da imprensa periódica feminina e feminista. A revista Sociedade Futura participou neste processo editorial, concretizando o sonho há tempos acalentado pela sua fundadora Maria Olga de Moraes Sarmento da Silveira que o marido Manuel João da Silveira, médico naval, tornou possível. Como confidenciou nas Memórias publicadas nos finais da vida o facto de uma mulher fundar uma revista “traduzia não só ousadia inacreditável, como perigosa ameaça de emancipação”. Desde a primeira hora, a fundadora teve, pois, consciência das reacções que a sua iniciativa editorial iria provocar, mas isso não a levou a abdicar de um ideal que, no seu entender, se projectava no tempo, dando à publicação nome de Sociedade Futura. Isto significa igualmente que acreditava no carácter transformador da imprensa, nomeadamente da imprensa periódica especializada.

Neste contexto e dada a falta de dados mais explícitos quanto a pormenores mais objectivos da complexidade da edição, não deixa de ser pertinente assinalar a escolha de Ana de Castro Osório para sua directora. Esta, ao tempo, era já uma personalidade prestigiada, com obra publicada, tal como o marido, Paulino de Oliveira, que à época tinha adquirido uma certa notoriedade como escritor e publicista. Embora se situassem em campos ideológica e politicamente distintos – Olga Morais Sarmento monárquica e Ana de Castro Osório republicana –, este afastamento não impediu que se aliassem num projecto comum entendendo talvez que a divulgação cultural e a luta pela dignificação da mulher estavam acima das divergências que as separavam. Fosse como fosse, o certo é que esta última assumiu desde o primeiro número a direcção, e àquela, a fundadora, coube apenas o papel de redactora. Esta situação permaneceu até ao n.º 7 da revista, pertencendo ambas ao corpo redactorial e, como tal, assinando textos em números sucessivos até ao último. Aqui, numa pequena nota, avisavam-se os leitores de que a directora deixaria de fazer parte da redacção. No número seguinte verificava-se que a redactora ocupava o lugar de directora e assim se manteve até ao final da publicação.

Nas páginas da Sociedade Futura nada transparece das razões do confronto entre as duas mulheres empenhadas num projecto comum de projecção de um feminismo de cariz cultural. O certo é que Ana de Castro Osório não mais colaborou na revista e que esta prosseguiu o seu caminho aparentemente sem dificuldades e sem que os objectivos da sua criação fossem alterados de forma substantiva. Isto significa que a publicação se manteve como expressão do que podemos chamar um feminismo cultural sem ter sido abalada na sua essência por divergências pessoais. Contudo, não restam dúvidas que estas existiram. Em correspondência dirigida ao pai, Ana de Castro Osório refere-se de forma muito crítica à sua antiga companheira manifestando claro afastamento. Por sua vez, anos mais tarde, por ocasião da morte de Paulino de Oliveira, Olga Morais Sarmento em carta de condolências lembra não só as boas relações que haviam existido entre ambas, como as circunstâncias que as haviam separado, apelando para uma reconciliação. Tanto quanto se sabe, este apelo terá ficado sem resposta, se bem que pela mesma altura aquela publicou na revista Madrugada uma carta aberta explicitamente dirigida por uma republicana a uma monarquista. Embora nada indicie definitivamente que se trate de uma forma de responder ao apelo a uma amizade do passado, não deixa de ser significativo para o entendimento do feminismo da primeira vaga a possível confluência de ideologias políticas díspares numa luta comum.

São escassas as referências que terão guiado as duas intelectuais no projecto de edição de uma revista. O nome só por si representa esperança numa nova sociedade que o momento político poderia vir a concretizar, mas que estaria longe de ser partilhado por ambas, dadas as ideias que cada uma professava neste campo. Estaria, sim, em causa um ideal cultural e humanista concretizado pela emergência das mulheres na sociedade a construir e que Ana de Castro Osório enunciara ao afirmar que a finalidade da Sociedade Futura seria “vulgarizar conhecimentos, ideias e princípios racionais de educação e bom senso, lutando deste modo pelo futuro da nossa raça e do nosso país”. Pretendiam deste modo contribuir para a “criação” de uma nova sociedade, mediante a viabilização de uma nova cultura, baseada no valor fundamental da educação, na abertura aos novos caminhos da ciência, no conhecimento das artes e das letras, para a qual o papel das mulheres seria fundamental, mas não único. Neste sentido publicaram textos nestas áreas de autores nacionais e estrangeiros, assim como deram especial atenção à divulgação de perfis de mulheres, contemporâneas ou não, aristocratas ou não, tornando clara a missão que atribuíam às mulheres ao lado dos homens na construção da sociedade futura. Significativo neste contexto foi também o convite feito a Virgínia Quaresma para secretariar a revista, dado o seu lugar de pioneira enquanto jornalista profissional portuguesa, além de ser uma acérrima defensora dos direitos das mulheres.

Enfim, classificar a Sociedade Futura apenas como uma revista feminina e feminista, acantonando-a exclusivamente em questões identitárias, seria talvez minimizar o papel muito mais abrangente que as duas editoras haviam tido em mente. Pretendiam, sim, a valorização global e humanista das mulheres, fundamental para ocuparem na sociedade o lugar que lhes pertencia como parte integrante dos seus membros. Neste processo, como já se tem referido, a educação ocupava um lugar primordial, pois só nela estaria a génese da cultura como vector de igualdade entre homens e mulheres. Seria este o sentido das variadas temáticas focadas ao longo da publicação, que abrangiam, pelo menos tendencialmente, todos os campos da acção humana, todos os seres humanos: pedagogia e literatura, artes e letras, música e pintura, história e filosofia, tradições e costumes, personalidades e presenças, etc.

Nota – A edição com os n.ºs 21-22 de Sociedade Futura, respeitante ao mês de Abril de 1903, não se encontra reproduzida por não se ter conseguido aceder a qualquer exemplar nas muitas bibliotecas públicas e privadas para o efeito consultadas. O Seminário Livre de História das Ideias agradece qualquer informação que permita superar esta lacuna.

Lisboa, Julho de 2019
Zília Osório de Castro