Um voo singular e longo
"Ali – tudo o que é grande, forte, altivo:
A Águia poisa, a nuvem pára,
O ar é puro e vivo
O Céu é mais profundo e a luz mais clara!"
(Jaime Cortesão, A morte da águia, Poema heróico)
Ao atravessar a Primeira República, A Águia fez e deu a conhecer o ambiente cultural e cívico da segunda e da terceira décadas do século XX português.
A leitura das peças dos quatrocentos e vinte e três autores publicados transfere-nos para o seio dos confrontos doutrinários, das expressões de sensibilidade e das referências culturais da época.
Ao apresentar-se, a partir de Janeiro de 1912, como órgão da "Renascença Portuguesa", a revista mensal de literatura, arte, ciência, filosofia e crítica social passou a dar expressão a um dos movimentos de intelectuais mais significativos e bem sucedidos na história nacional, pela ambição invulgar que mostrou, pelas vontades que soube congregar e, sobretudo, pela actividade criativa, editorial e formativa que desenvolveu.
O próprio subtítulo, acima transcrito, regista a largueza de um gesto que queria abarcar autores distintos e domínios variados, desde que unidos pelo propósito de se subordinarem ao imperativo da reforma cultural da comunidade nacional. A atenção dispensada às artes, com a inclusão regular de gravuras originais, mais tarde reunidas em álbum autónomo, exemplifica, em âmbito particular, um desígnio que era geral.
Embora a esperança de ressurgimento nacional assente na edificação dos concidadãos tenha merecido ampla adesão, já a aproximação dispensada ao nacionalismo novi-romântico e ao programa saudosista anunciado por Teixeira de Pascoaes, no editorial de abertura da segunda série, mostrou-se bem mais circunscrita. Álvaro Pinto, a alma executiva do periódico, tomou mesmo a iniciativa de propor a declaração de que o saudosismo não constituía doutrina da revista, António Sérgio contestou-o, em polémica viva, e o próprio Pascoaes acabou por retrair-se face às reservas suscitadas pela iluminação poética que revelara.
A par da riqueza, da variedade e das contradições dos letrados da época, mormente nas suas vertentes adversas à positividade da racionalidade científica, A Águia distinguiu-se por dar a conhecer uma república com vida intelectual policêntrica.
Não deixando de ser um título de vocação nacional, aliás, bem sucedido desde o início, a revista foi sempre uma publicação centrada no Porto, mesmo quando Álvaro Pinto levou a sua produção para o seu Anuário do Brasil, no Rio de Janeiro.
A este propósito, não pode deixar-se de sublinhar que o vínculo do mensário ao Porto redobrou a partir da terceira série, dirigida por Leonardo Coimbra. Por um lado, o projecto seareiro, congeminado por renascentistas do grupo de Lisboa, a que Jaime Cortesão se juntou, afirmou-se e fez vingar as teses que tinham oposto Proença e Sérgio a Pascoaes. Por outro lado, a criação da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, por iniciativa do próprio Leonardo Coimbra, conduziu a um relacionamento muito próximo entre a direcção da revista e a actividade docente da nova e irreverente escola.
A leitura de A Águia, na elucidação das vozes, tonalidades, convergências, contradições, percursos e ciclos que lhe foram próprios, não cabe, obviamente, neste apontamento introdutório, que se destina a assinalar tão-só o lugar maior que o mensário ocupou na história intelectual recente.
Ao leitor faculta-se, agora, a possibilidade de regressar à fonte, a uma fonte íntegra, nos duzentos e cinco números das suas cinco séries. Proporciona-se, aliás, matéria editorial mais completa do que aquela que os contemporâneos da publicação conheceram, pois a edição dos fascículos 10/11, da quarta série, não circulou por interdição censória e encontra-se, agora, ao seu alcance.
Disponibiliza-se, igualmente, documentação relevante e extensa para a compreensão do teor e do significado do mensário e do movimento de que foi o órgão, seja no âmbito conceptual seja no plano das vicissitudes do contexto.
Sem a pretensão deslocada de coligir qualquer acervo sistemático, reuniram-se cerca de três centenas e meia de documentos.
No âmbito da Renascença Portuguesa, reproduzem-se as cartas originadas no devaneio, simultaneamente franciscano e maçónico, que o republicano Cortesão viveu em Junho de 1911; dão-se a conhecer os documentos principais da associação, os seus projectos programáticos, estatutos, corpos sociais e associados; inventaria-se o conjunto das obras publicadas com a chancela de edição própria; acrescenta-se estudo particularmente informado e completo.
Sobre A Águia, propriamente dita, adicionam-se as separatas, o Álbum Artístico, várias dezenas de cartas e numerosos testemunhos redigidos pelas figuras cimeiras do periódico. A recepção da revista pelos seus contemporâneos pode ser apreciada no Inquérito Literário, de Boavida Portugal, enquanto algumas das interpretações de que foi objecto constam em breve antologia da literatura crítica que lhe é dedicada.
No plano analítico, é de referir que as mil novecentas e três peças publicadas na revista podem ser consultadas através de descritivos e de oito índices próprios, o que representa não só uma condição de acesso ao material publicado inusual, quanto contém, o que é bem mais relevante, um mapeamento sistemático da informação que se tem por invulgarmente estimulante.
A análise qualitativa de uma base de dados onde constam mais de dez mil e quinhentas referências distintas, e um número muito superior de ocorrências, é um convite para que o leitor não esqueça que o saber é, em primeiro lugar, um exercício de imaginação, de reformulação de perguntas antigas e de configuração de novas interrogações, já que o universo da matéria questionável e o âmbito das respostas viáveis se encontram meticulosamente expandidos. Um exemplo singelo de análise qualitativa desenvolvida por investigador do Seminário Livre de História das Ideias: a distribuição dos artigos em que o conceito de saudade está presente quando confrontada com a frequência da participação de Teixeira de Pascoaes na revista conduz a duas linhas genericamente paralelas, com frequências, picos e cavas coincidentes.
A possibilidade de cada um dos leitores refazer o trajecto de A Águia, de acordo com a cartografia da curiosidade, dos interesses e da perspicácia próprios, fica-lhe, assim, proporcionada.
Luís Andrade