A construção da vida moderna
À memória de Marieta Dá Mesquita
A Construcção Moderna: Revista Quinzenal Illustrada, sob a Direcção de um grupo de Constructores: Collaborada por Distinctos Technicos da Especialidade, foi um periódico de arquitectura, publicado entre 1 de Fevereiro de 1900 e 25 de Julho de 1919, em Lisboa. Apresentou-se no seu primeiro editorial como sendo a publicação que, ao permitir o estudo e o acompanhamento dos melhoramentos em curso na construção, preenchia “uma lacuna no meio literário e artístico português”. Ao divulgar conhecimentos técnicos (processos construtivos, materiais, etc.), estéticos e científicos naquela que é reconhecida como a primeira revista especializada nas áreas da arquitectura e construção em Portugal, fez jus ao seu título, optando por um alinhamento programático em sintonia com os utilizados em publicações internacionais da especialidade.
Ao descreverem a missão a que a revista se propõe, os editores engenheiro José Mello de Mattos e o arquitecto de obras públicas Rosendo Carvalheira incentivam o envio de projectos para publicação por colaboradores literários e artísticos. Aceitam projectos de autores e de edificações de todos os géneros, pretendendo disponibilizar descrições desenvolvidas aos seus leitores. Acolhem também artigos sobre os modernos processos de construção, sobre outras construções como obras de arte e elementos decorativos a aplicar em edifícios, nomeadamente nos interiores, como é o caso de peças de mobiliário. Incentivam ainda o envio de artigos sobre arqueologia artística e arte, assinalando o seu interesse pelo património arquitectónico nacional, na senda do desígnio de constituir “o inventario patriótico dos nossos progressos technicos-artísticos“. Na apresentação dos projectos é genericamente dada mais relevância ao proprietário do que ao arquitecto. Mas, entre o conjunto de intervenientes no projecto, incluindo o construtor, o arquitecto é aquele que se destaca pela autoria e definição da arquitectura, que se expressa nos subtítulos de descrição, distribuição e construção.
Na relação com os leitores, saliente-se o diálogo estreito que se expressou em mais de uma centena de artigos, sendo usual o contacto no início de cada ano ou em jeito de balanço no seu final, em artigos intitulados aos srs. assignantes e anunciantes, aos nossos assinantes ou no expediente. A integração da revista As Artes do Metal no seu ano XI, em 5 de Janeiro de 1911, demonstra o interesse nas artes integradas e leva a que A Construcção Moderna se estruture com seis novas secções: Architectura estrangeira, Actualidades, Architectura nacional, Serralharia artística, Cantaria e escultura e Marcenaria e carpintaria artísticas.
Na história da arquitectura do século XX em Portugal, A Construcção Moderna revela um país que se modernizava nas suas primeiras duas décadas através da imagem de uma cidade que se começava a questionar entre a continuidade da tradição e a adesão a novos hábitos, modernos, que vinham do estrangeiro. Nesta situação, a revista posiciona-se esclarecendo que iria dar a conhecer “primeiro a arquitectura nacional, e só depois a estrangeira”. Sobre a modernidade, esclarece que terá dois objectivos na selecção de trabalhos: expressar a representatividade da “produção de inícios prometedores”, ou seja, de uma primeira geração de arquitectos modernos, e confirmar “reputações conquistadas e reconhecidas”. Neste contexto, publica logo no seu primeiro número um projecto do reputado arquitecto Miguel Ventura Terra (1866-1919), que terá significativa presença nas páginas da revista, a par de diversos projectos do “inteligente e estudioso”, “jovem e talentoso” e ainda “simpático e perseverante” Raúl Lino (1879-1974). Terá sido por estas suas características que, subtilmente, foi ganhando aderentes a uma expressão arquitectónica “tradicionalista” que explora em desenhos que se publicam com destaque na revista, expressão que viria a ser conhecida como “A Casa Portugueza”.
Assumindo estabelecer um elo entre os profissionais de arquitectura e a opinião pública, e perspectivando-se como instrumento crítico, A Construcção Moderna divulga concursos públicos de arquitectura, assumindo particular importância o Prémio Valmor, o que também dá resposta ao objectivo de deixar registado “tudo o que a respeito de arte arquitetonica se produzir no nosso meio”. Sobre a formação e o ensino da arquitectura, divulga concursos académicos e as recentes metodologias de projecto que abordam agora os novos programas e tipologias, nomeadamente estações de caminho-de-ferro, museus, casinos, circos equestres e ginásticos, panteões, teatros e escolas.
O urbanismo está presente na revista de uma forma subtil, subentendendo-se na sua relação com o delinear haussmaniano nas avenidas novas do plano de expansão da cidade de Lisboa (1874-1909) traçado por Frederico Ressano Garcia. A então Avenida Ressano Garcia (designada “da República” com a chegada da 1.ª República) dava início a um percurso que ampliava a cidade, desde o antigo Passeio Público até ao Passeio do Campo Grande. Nestas avenidas foram construídas diversas das casas e palacetes publicados. Estes reflectem as modernas questões relacionadas com o conforto, que se expressavam na higiene e salubridade das cidades, e ainda na organização funcional da casa que permitiria a ventilação e a iluminação naturais, em projectos adaptados ao clima local. O saneamento urbano é aliás tema transversal ao longo dos anos em que foi publicada.
No âmbito dos estudos sobre esta revista, a referência ao projecto de 2004 intitulado Arquitectura (s) de Papel – estudo sistemático de imagens e projectos de arquitectura do séc. XX, através da "A Construcção Moderna" 1900-1919, é incontornável. Dele resultou a antologia Revistas de Arquitectura: Arquivo(s) da Modernidade, publicada em 2011 e coordenada pela investigadora Marieta Dá Mesquita, constituindo-se como impulsionador de um interesse pelos periódicos de arquitectura que diversas dissertações começavam a abordar desde o início do século XXI, de que se destaca a tese de Paulo Simões Nunes A Construcção Moderna e a cultura arquitectónica no início do Novecentos em Portugal, de 2000. Os temas estudados versaram principalmente projectos e obras de arquitectura publicados, nomeadamente as tipologias, a representação gráfica da arquitectura, os aspectos relacionados com os modernos materiais e novos sistemas construtivos, ou ainda o mobiliário e as artes decorativas.
Hoje, confirma-se o desejo do corpo editorial de que a revista se tornasse “um repositório de trabalho util”, declarado no editorial do primeiro número. Os arquitectos consagrados e reconhecidos pelo tempo, ao terem publicado nas suas páginas projectos que expressam uma modernidade em desenvovimento nas cidades, particularmente em Lisboa, encontraram um fiel depositário das suas ideias e ideais. Temas como os problemas da habitação, da salubridade e da higiene ficam para sempre registados em artigos que se prolongaram por diversos números. Os interessados nos desenvolvimentos em curso, nacionalmente e também internacionalmente, acompanhavam as novidades, nomeadamente através de relatórios de participação em congressos no estrangeiro, partilhados nas páginas d’A Construcção Moderna. Constitui-se ainda como repositório iconográfico, como memória visual da cultura arquitectónica do início do século XX, configurando-se como fonte de informação de inegável interesse para a investigação em arquitectura e urbanismo. Aliás, a fotografia, em reportagem ou isolada, e a sua legenda descritiva, proporcionam eixos de pesquisa suscitados pela análise comparativa da imprensa especializada da época.
Em Portugal duas publicações da especialidade são suas contemporâneas. Uma tem enquadramento profissional. Trata-se d’O Annuario da Sociedade dos Architectos Portugueses (1905-1910), periódico da associação de classe que se instituiu em 1902. Note-se que, num comprometimento para com o processo de legitimação corporativa e profissional da classe dos arquitectos, A Construcção Moderna publica documentos desta sociedade, nomeadamente os estatutos da sua constituição, valorizando e defendendo a classe. A outra publicação surge em Janeiro de 1908 com o primeiro número da revista A Architectura Portuguesa: Revista mensal de Arte Architectural Antiga e Moderna. Collaborada por architectos e escriptores d’arte portuguezes. Eduardo A. Nunes Collares, simultaneamente proprietário das duas publicações a partir de 1909, defende para cada uma delas um projecto editorial diferente e necessariamente destinado a um público distinto, embora se repitam temas e projectos publicados; no entanto, A Architectura Portuguesa excluirá das suas páginas as obras consideradas correntes a que a A Construcção Moderna continuava atenta.
Para a disponibilização de documentos originais relacionados com a arquitectura e urbanismo referentes às duas primeiras décadas do século XX, recorreu-se maioritariamente a arquivos. Embora nem todos os espólios dos arquitectos citados se encontrem sistematizados em fundos e colecções dedicadas – como os que se encontram nos acervos arquivísticos da Fundação Calouste Gulbenkian, do Forte de Sacavém (SIPA, sob a tutela da Direção-Geral do Património Cultural), da Fundação Marques da Silva, entre outras –, os processos de licenciamento dos projectos podem ser consultados em arquivos municipais, e significativos registos fotográficos dos edifícios referenciados n’A Construcção Moderna podem encontrar-se em arquivos fotográficos, como o do Centro Nacional de Fotografia ou o Arquivo Fotográfico Municipal de Lisboa.
De todos estes estudos e documentos, a secção Magasin deste sítio disponibiliza uma pequena selecção sobre os que abordaram a revista em si, enquanto caso de estudo que permite conhecer melhor os actores, a atitude moderna que chegava a Portugal e o próprio ambiente em que a arquitectura e urbanismo desenhavam a nova cidade e o novo cidadão no dealbar do século XX.
Por fim, dá-se a conhecer que, com a apresentação d’A Construcção Moderna, se inaugura um novo âmbito temático no portal RIC – Revistas de Ideias e Cultura que se dedicará às publicações periódicas, comerciais ou associativas, de arquitectura e urbanismo em Portugal no século XX.
Sofia Aleixo