A redescoberta da Atlantida

"Um escritor português, João de Barros, e um escritor brasileiro, Paulo Barreto, depois de terem inventado muitas páginas de encantadora literatura, tiveram um achado geográfico: encontraram essa misteriosa Atlantida, nunca marcada no roteiro dos navegadores, mas sempre sonhada e vagamente citada por historiadores e cosmógrafos de ardente imaginação." (Olavo Bilac, 1916)

Há um século, mais precisamente na data de 15 de novembro de 1915, aparecia em Lisboa essa misteriosa Atlantida, aludida pelo poeta Olavo Bilac. Tratava-se de uma revista, cuja denominação – Atlantida. Mensário Artístico, Literário e Social para Portugal e Brasil – inspirava-se na lenda do continente perdido, para nomear de forma semântica um projeto editorial que buscava (re)estabelecer a ligação entre as duas partes do mundo que as águas do oceano haviam separado. O subtítulo indicava a periodicidade, o teor programático e enfatizava a natureza binacional da publicação, dirigida a quatro mãos, em Portugal por João de Barros, e no Brasil por Paulo Barreto, o popular João do Rio, os dois mais notáveis defensores da aproximação luso-brasileira, no século passado (Ribeiro Couto, 1961-1962).

A Atlantida possuía boa configuração gráfica. A capa em papel cartonado ostentava apenas o seu título emoldurado por desenhos artísticos, padrão que predominou na coleção da revista. O miolo era impresso em papel mate, com os textos compostos em uma única coluna, às vezes decorados com vinhetas artísticas ou ilustrados com desenhos, retratos, fotografias e caricaturas. A organização das matérias respeitava certa ordem, de maneira a formar dois blocos distintos: no primeiro, agregavam-se contribuições literárias, artigos, ensaios e entrevistas sobre questões coetâneas, entremeadas com reproduções de telas de pintores famosos e de obras de arte. O segundo compunha-se de três seções fixas: “Revista do Mês” – síntese dos principais acontecimentos políticos e culturais do período, inclusive apreciações críticas sobre exposições de arte, espetáculos de teatro, concertos musicais e récitas de ballet; “Livros” – espaço destinado à divulgação do lançamento de publicações e resenhas literárias; “Notícias e Comentários” – segmento reservado a pequenos informes de política internacional, além de erratas e observações do gênero. Do número dezoito em diante, no segundo bloco, incorporaram-se as seções "Portugal na Grande Guerra" e "Revista das revistas", que abordavam, respectivamente, a participação lusa no conflito mundial e os sumários de outras publicações similares, recebidas pela redação. Cabe lembrar que o periódico veiculou colaborações de escritores, políticos, diplomatas e militares, nomes que formavam a nata da intelectualidade que se movimentava no eixo Lisboa-Rio de Janeiro, durante as duas primeiras décadas do século XX.

Revistas de idéias e de cultura costumam ter vida efêmera, quase sempre abreviada pela escassez de recursos. A Atlantida foi uma exceção. Circulou com certa regularidade, por quase cinco anos. Até o número 36, de março de 1919, manteve a linha editorial direcionada para o estreitamento das relações luso-brasileiras. Daí em diante, o mensário expandiu o seu espectro temático, voltando-se para a defesa da "alma latina", nomeadamente a comunhão entre Portugal, Brasil e França. Nessa altura, além dos fundadores, incorporaram-se à gestão do periódico mais dois diretores, Nuno Simões, em Lisboa, e Graça Aranha, sediado em Paris.

A edição da revista foi suspensa em abril de 1920. Porém, o seu desaparecimento, seguido da morte precoce de João do Rio, não implicaria no fim do projeto abraçado pelos seus idealizadores. João de Barros e a rede de intelectuais, que se tecera em torno do mensário, sobreviveram-no, continuaram a disseminar suas idéias, influenciando novas gerações. A proposta de aliança econômica e política com Portugal malogrou, mas, de algum modo, as aspirações culturais acalentadas pelos dois Joões foram contempladas, e até expandidas, com o estabelecimento da Comunidade de Países de Língua Portuguesa, em 17 de julho de 1996.

No seu centenário, a Atlantida ingressa no mundo virtual. Isto significa torná-la acessível a um público mais amplo, cujos interesses certamente extrapolam o âmbito acadêmico. Assim, junto à edição digitalizada dos 48 números publicados, o sítio traz um conjunto de informações relevantes sobre a revista, a exemplo de dados editoriais e programas temáticos, com a reprodução do prospecto de lançamento, acompanhado das justificativas dos responsáveis pela publicação. Inclui-se aí o editorial de abertura do número 37, quando a Atlantida alterou o seu subtítulo, passando a se denominar "Órgão do Pensamento Latino para Brasil e Portugal".

A par disso, encontram-se disponibilizados alguns documentos que ajudam o leitor internauta a contextualizar a publicação, a conhecer melhor os seus fundadores e as principais iniciativas tomadas pelo periódico, a propósito de reforçar os laços entre Brasil e Portugal. Neste sentido, sugiro passar uma vista d'olhos na seleção de cartas de João do Rio endereçadas a João de Barros, conferir a homenagem prestada pela Atlantida ao escritor Olavo Bilac e examinar a mensagem autógrafa que o presidente Epitácio Pessoa legou à revista, por ocasião da sua visita à cidade de Lisboa. Complementam esses testemunhos fontes iconográficas e mapas, que enriquecem o material exibido e ajudam a compor o panorama da época.

Ao lado desses conteúdos, acham-se reproduzidos estudos recentes sobre a Atlantida, bem como indicações de artigos, monografias, teses e dissertações que tomam o Mensário como objeto de pesquisa. Outra possibilidade que se apresenta aos investigadores é a consulta ao conjunto de bancos de dados, elaborados a partir da indexação de todos os textos publicados pela revista, o que permite a pesquisa direta por diferentes analíticos, como autor, assunto, conceito, autores citados, obras mencionadas, além de referências geográficas.

Mais flexível do que os suportes tradicionais, a mídia eletrônica permite a continuada expansão das seções deste sítio, embora nem de longe possa substituir o encanto de folhear as páginas impressas de uma revista editada no alvorecer do século passado. Por certo, outras colaborações deverão ser agregadas, à medida que a temática aqui explorada venha a despertar o interesse de pesquisadores, curiosos e internautas, em geral. O sítio ficará sempre em construção, isto é, a qualquer momento será possível adicionar-lhe novos conteúdos. Fica, então, um convite aos visitantes-leitores para que se deixem envolver por essa misteriosa Atlantida e, quem sabe, se sintam estimulados a oferecer novos contributos à sua história.

Finalmente, cabe registrar que este projeto, que integra a Coleção Revistas de Idéias e Cultura, nasceu do convênio de cooperação científica firmado em 2008, entre o Laboratório Redes de Poder e Relações Culturais, da Universidade do Rio de Janeiro, e o Seminário Livre de História das Idéias, da Universidade Nova de Lisboa. A parceria acadêmica, por sinal bastante fecunda, já ensejou diversos eventos no Brasil e em Portugal, além da publicação de dois livros, dando continuidade à tradição dos estudos luso-brasileiros.

Lucia Maria Paschoal Guimarães