KWY

A revista KWY permanece um momento único na história da arte e da edição em Portugal (e assumimos aqui uma identidade geográfica nunca reivindicada pelos seus criadores, que a designavam “deste mundo”). As três letras do alfabeto – que não constam do léxico da língua portuguesa desde 1911 – eram prováveis de causar estranheza e consequente rejeição. A dificuldade de enunciação (kapa-dâblio-ípsilon), que muitos não saberiam decifrar, colocava a revista num registo elitista em Portugal, excluindo à partida todos que não tinham acesso à língua estrangeira.

Revelou-se, todavia, uma escolha acertada, pois o nome KWY acabou por ultrapassar o objecto inicial – uma publicação – para constituir uma identidade. KWY dá nome a uma revista, a um colectivo de artistas – o Grupo, e a algumas edições.

Fundada em 1958 por René Bertholo e Lourdes Castro, a revista KWY nasce de forma espontânea no Boulevard Pasteur, em Paris, espaço de habitação e trabalho dos dois artistas. Originalmente concebida como um meio de comunicar e de partilhar ideias (uma carta de Bertholo aos amigos), conteúdos e modus operandi foram desde o início indissociáveis. Bertholo tinha descoberto uma nova seda de serigrafia – um tecido de nylon com uma trama muito fina – que iria revolucionar a técnica serigráfica até então usada em Lisboa. A técnica da serigrafia permitiu a replicação – nos primeiros números reduzida a baixas tiragens de 60 exemplares –, mas também o uso da cor, o que marcava a diferença num universo editorial onde prevalecia o preto e branco.

A KWY, revista-objecto, construiu-se à medida da teia de relações que os seus membros iam criando ou fortalecendo, sem anúncio de programa, filiação ou manifesto. Amigos que vinham dos tempos das Belas Artes e das tertúlias no café Gelo, em Lisboa, como Costa Pinheiro, Gonçalo Duarte, João Vieira e José Escada, integraram naturalmente o corpo editorial da revista. Foram eles que, logo em 1957, em entrevista dada ao Diário Ilustrado (17 Dez.) a propósito da exposição realizada na Associação de Estudantes da Faculdade de Direito de Lisboa, anunciaram a dificuldade de trabalhar e viver da pintura em Portugal. Acabariam por emigrar para Munique, Paris e Londres, beneficiando a dada altura de bolsas da Fundação Calouste Gulbenkian. A estes expatriados juntaram-se dois estrangeiros, o alemão Jan Voss, com quem Lourdes, René e Costa Pinheiro haviam travado conhecimento em Munique, em 1957, e o búlgaro Christo Javacheff, amizade recente de Paris. Os oito formaram o Grupo KWY, que a partir de 1960 se apresentou como colectivo em exposições.

A premissa da revista foi a mesma que caracterizou a identidade plástica do grupo: a experimentação. José Gil, que colaborou na revista, define cada exemplar como um objecto-artístico: “Se se atentar à maneira como era feita, impressa à mão, com tiragem limitada no início a umas dezenas de exemplares, misturando serigrafias originais, fragmentos de objectos (disco, papéis colados, arame) com fotografias, imagens de bandas desenhadas, etc.” Curiosamente a publicação da revista (1958-1963) antecedeu e sobreviveu ao Grupo (1960-1962), que se apresentou completo apenas em quatro exposições (Saarbrücken e Lisboa em 1960, Paris em 1961 e Bolonha em 1962). À semelhança de outros colectivos artísticos contemporâneos, como o francês Nouveau Réalisme ou o americano Fluxus, o grupo KWY valorizava o processo artístico inerente à obra, mas, ao contrário do que sucedia com o grupo El Paso, que “nasceu como grupo com consciente intenção de acção cultural, o KWY tornou-se grupo na própria partilha entre artistas ainda em pesquisa do seu projecto individual”1.

Segundo Lourdes Castro, o que uniu o Grupo não foram as tendências estéticas, mas o facto de serem amigos: pessoas que se tinham (re)encontrado ou cujo trabalho se admirava. Em torno da revista gravitaram artistas plásticos, escritores e poetas. As colaborações faziam-se à medida dos convites e, nos primeiros números da revista, era evidente o número de presenças portuguesas. A partir do número 6, exemplar que iniciou as tiragens maiores de 500 exemplares – para depois regressar aos 300, número que conseguiam efectivamente escoar –, é nítido o reforço de artistas e intelectuais estrangeiros.

Destacam-se, nos primeiros números da revista, as colaborações literárias e poéticas de Helder Macedo, João Lopes Vidal, Herberto Helder, Nuno de Bragança, José-Augusto França, Manuel de Castro, Luiz de Macedo, Pedro Tamen, Sebastião Fonseca, Alfredo Margarido, José Manuel Simões, Cristovam Pavia, António Areal, José Gil, Mário Cesariny de Vasconcelos e António Ramos Rosa. Nas artes plásticas, a par dos elementos do Grupo, surge Maria Helena Vieira da Silva, nome maior do círculo artístico parisiense, que aceitou colaborar com duas serigrafias em diferentes números. Esta colaboração resultou da amizade – da artista e do marido, o pintor Arpad Szenes –, com o colectivo, em particular com Lourdes Castro, afinidade que durou até ao fim da vida do casal e se encontra documentada em registos fotográficos e epistolares. Além de Vieira, também Arpad Szenes, e o artista e crítico de arte, Guy Weelen, colaboraram na revista. Manuel Cargaleiro e Jorge Martins, a viver em Paris à data, estão também representados.

O facto de todos os membros do Grupo estarem a residir fora do país de origem, em contacto com novas realidades e desafios – pessoas, exposições, produções artísticas, eventos, publicações –, contribuiu para o crescente cosmopolitismo da revista. Em simultâneo, os elementos estrangeiros do Grupo – Voss e Christo –, assumiram a responsabilidade editorial da revista (números 9 e 11) e trouxeram às páginas da KWY os intervenientes do momento, em particular os Nouveaux Réalistes de Restany, com o seu sentido do poder globalizante da cultura urbana.

A revista acabou no número 12, sem anúncio prévio ou planeamento, por acordo tácito do Grupo. Empenhados nas suas pesquisas artísticas e sem capacidade para se dedicarem a um projecto que ameaçava integrar o “ar do tempo”, em detrimento da sua total liberdade – estética e programática –, optaram por terminar a publicação, alegando razões supersticiosas. Lourdes Castro editou o último número, em formato Álbum. O conjunto de 54 postais ilustrados, com obras dos vários colaboradores ao longo dos anos, manteve o critério do lúdico e inesperado comum a toda as edições: postais que podiam ser destacados, reduzindo a revista à sua capa e contracapa e tornando-a – a gosto – um invólucro de ausências ou de memórias.

Sandra Brás dos Santos


  1. Fernando Dias, “El Paso e KWY: um diálogo ibérico (em Paris)”, in KWY. Paris 1958-1968, Lisboa, Centro Cultural de Belém, Assírio & Alvim, 2001, p. 64.↩︎