Dados editoriais
Experimental, peripatética, a cada número recriada, a revista KWY permanece caso isolado no contexto da arte portuguesa dos anos 50 e 60. Não tendo tido modelos domésticos, para lá de uma longínqua inspiração nos Modernistas de 1911, com um tempo de vida expandido a cinco anos e mais alguns meses de vida, a KWY publicou-se em Paris, entre maio de 1958 (n.º 1) e fevereiro de 1964 (n.º 12). Nasceu de uma ideia original de Lourdes Castro (1930) e de René Bertholo (1935-2005), que lhe deu nome por combinação de três letras que naquela época não existindo no alfabeto oficial português logo serviram para enunciar um programa tão sucinto quanto afiado: na arte combinatória e concreta de letras ausentes da oficialidade da língua portuguesa, se declarava o que havia para declarar, o desapego de uma atmosfera cultural idiossincrática e fechada sobre si mesma, acanhada, de escassa vitalidade para as artes. Distanciamento mas não ruptura, porém, porquanto nas páginas da KWY nunca os portugueses deixaram de figurar, na qualidade de artistas plásticos, poetas, simplesmente amigos e colaboradores de uma ou várias ocasiões. Assim pois até ao número 6, a língua da revista foi a portuguesa, intercalando-se com o francês, o espanhol, o alemão ou o inglês, ao sabor dos contributos literários, até que atraindo a revista um público cada vez mais amplo e cosmopolita, lá ficou o francês, mais ecuménico idioma, até ao derradeiro número 12, com que se terminou a edição, em 1964.
No panorama artístico e cultural europeu dos anos 50 finais, a KWY emparelhou com outras publicações de vanguarda. Citamos algumas como a Panderma – Revue de la fin du monde (1957-1977), de Carl Laszlo; a Dé-collage (1962-1969), de Wolf Vostell; a Zero=Nul – revue pour la nouvelle conception artistique (1961-1964) de Herman de Vries; a Daily-Bul (1957-1983), de André Balthazar e Pol Bury, todas de efémera condição, descendentes diretas de Dadá e dos Surrealismos europeus. Por algumas delas passaram aliás vários colaboradores da KWY, entre os quais Lourdes Castro e René Bertholo. Plataformas de heterodoxia e libertarismo, de fronteiras fluidas e abertas a todos os géneros, estilos e gerações, elas foram sendo anunciadas nas próprias páginas de KWY, à medida que a revista portuguesa foi colhendo apreciadores e começou a ser distribuída, à consignação, numa rede internacional de livrarias e galerias de arte, em particular, franco-alemã. Contudo, KWY distinguiu-se ainda das demais pelo seu modo de produção artesanal, ao privilegiar a serigrafia (e a colagem) como técnica e uma estética de ofício gráfico, a contracorrente da cultura de consumo de mass media que emergiu na Europa após a 2.ª Grande Guerra e que tinha algo de movimentos tão excêntricos como o Arts and Crafts de William Morris.
As sedes da KWY foram os ateliês de Lourdes Castro e René Bertholo. Uma mesa de desenho, um cavalete e um estendal de molas, o René preparando as sedas e a impressão, a Lourdes tratando das cores e da secagem das provas, pelo meio, vivendo-se. A revista acompanhou as andanças dos dois artistas, chegados a Paris, sem morada fixa, em busca de uma água-furtada que pudessem alugar. Primeiro, no Boulevard Pasteur, onde permaneceram alguns meses, entre março e novembro, num quarto arrendado e de onde saíram os primeiros três números da revista (maio, agosto, outubro de 1958). Depois, por outros escassos cinco meses, na Rue de Vieux Colombier, onde ainda foi impresso o número 4 (maio de 1959). Já então tinham em vista outra morada na Rue des Saints Pères, no boémio e vetusto 6.º bairro ou arrondissement de Saint Germain des Près, onde permaneceram até depois do fim da revista.
“Caderno publicado em Paris”, “Revista de Artes Plásticas”, “Revue Trimestrielle d’Art Actuel”, a série KWY teve uma regularidade tão variável quanto a sucessão de subtítulos. Começou por trimestral e logo, com a promessa de “dois ou três números por ano”, sacrificando-se a pontualidade às disponibilidades cambiantes dos seus editores. KWY foi versátil também no volume de páginas e nos seus conteúdos, no todo, um verdadeiro cocktail de imagens, estilos e temperamentos. O primeiro número foi lançado como caderno de 8 páginas, com uma módica tiragem de 60 exemplares distribuídos num círculo restrito. O último, n.º 12, publicado com a data formal do inverno de 1963, já como número especial ou “Album”, coletânea de 54 cartões postais destacáveis, montados em 42 páginas, num vasto cortejo de artistas plásticos, poetas, performers, escritores, fotógrafos…
Além de René Bertholo e Lourdes Castro, que foram seus criadores, fizeram parte da formação editorial de KWY José Escada (1934-1980), António Costa Pinheiro (1932-2015), Gonçalo Duarte (1935-1986), João Vieira (1934-2009), Jan Voss (1936) e Christo (1935-2020), numa cumplicidade mesclada de utilitarismo e afinidades estéticas que se manteve até 1961 e assegurou a rotatividade de capa e coordenação geral de conteúdos editoriais.
Permeável a ideias e conteúdos, como não podia deixar de ser, a KWY foi não menos permeável a diversos formatos. Os primeiros três números tiveram uma medida de plaquette de 30 x 17,5 cm, em formato de retrato, ensaiando-se com o número 4 um formato panorama, de 24 x 30 cm, para uma tiragem aumentada aos 100 exemplares e 12 páginas. O número 5, publicado em dezembro de 1959, recuperou o formato vertical, com medidas de 25,5 x 17 cm, para os mesmos 100 exemplares e 44 páginas. A KWY 6 teve uma impressão mista, tipográfica, intercalada com serigrafias originais. Composta na Gráfica Monumental, em Lisboa, com uma tiragem elevada aos 500 exemplares, o mesmo formato de 25,5 x 17 cm e 32 páginas, foi o único número que se tentou editar e distribuir em Portugal. A partir do número 7, o formato estabilizou-se nos 31 x 21,5 cm, privilegiando, no formato vertical, a serigrafia e a colagem, para tiragens de 300 exemplares e um número de páginas oscilando entre as 36 (KWY 7 e 9) e as 60 páginas (KWY 11). Para além das composições visuais em serigrafia, houve lugar à poesia, à literatura e à crítica das artes, na forma de textos inéditos, recuperados, cortados, copiados e adaptados às circunstâncias e gostos.
O primeiro número de maio de 1958 coube a Lourdes Castro que assinou uma bela composição não figurativa a uma cor. Lourdes Castro teve ainda papel especial de coordenadora editorial na KWY 8 (outono 1961), e no número 12 (inverno de 1963). René Bertholo organizou dois números, KWY 2 (agosto de 1958), e KWY 10 (outono de 1962), assinando dois belos trabalhos de capa: um revelando o seu interesse por uma pintura em campos de cor, em homenagem a Mark Rothko (KWY 2), outro evidenciando a sua evolução por entre uma nova figuração, livre, heteróclita, transbordante de humor e de citações visuais, que se relaciona com o universo cinético das maquinetas celibatárias que começou a inventar pela mesma época. A José Escada e António Costa Pinheiro couberam as edições do n.º 3 (outubro de 1958), e do n.º 4 (maio de 1959), respetivamente. Seguiu-se um número especial, KWY 5 (dezembro de 1959), com o qual João Vieira, pintor e poeta letrista, assumiu um papel de editor literário, trazendo para a revista a poesia de Manuel de Castro, António Ramos Rosa ou Mário Cesariny, com a cumplicidade de Manolo Millares e António Saura, artistas plásticos e membros do grupo El Paso, fundado em Madrid em 1957. Gonçalo Duarte foi o autor da capa de KWY 6, impressa em preto e branco. Partilhou com José Escada o destaque deste número. KWY 6 assinalou a tentativa de transformar a revista num produto “sério”, como afirmaria René Bertholo. Porém, como não tivesse correspondido às expectativas nem dos editores-artistas nem dos leitores, voltou-se à iteração dos propósitos iniciais: pintar, colar, criar. O número 7 teve concepção editorial de Christo, a quem coube a capa em tela de serapilheira colada e estampilhada. Búlgaro emigrado, Christo chegara a Paris, por coincidência, na mesma semana dos portugueses, como eles trazendo na pouca bagagem uma confiança inabalável na sua própria arte e criatividade.
Coordenado por Lourdes Castro, KWY 8 foi um número especial, prata cintilante, evocando as proezas da astronomia soviética no auge da Guerra Fria. O número 9 calhou a Jan Voss que associou à sua capa umas letras desenhadas por Guido Biasi. A partir desta altura a equipa editorial de KWY reduziu-se a Lourdes Castro e René Bertholo, Jan Voss e Christo. À KWY 10 com organização e capa de René Bertholo, seguiu-se o número 11, organizado por Christo, dedicado à memória de Yves Klein, cuja morte prematura consternara a comunidade artística francesa e internacional. O número 12 de KWY, de novo organizado por Lourdes Castro, foi um número original no conceito de “Album” de postais e também pela razão de ter sido o último de uma série que a artista intencionalmente declarara encerrar. Por “razões de superstição”, o 13 de KWY nunca ia chegar à luz do dia.
Ana Filipa Candeias