Inconformistas e dissidentes
Se concebermos a ortodoxia como a legitimação recíproca entre a autoridade e a verdade que lhe assiste, os anos de viragem da década de 1950 para a de 1960 foram tempos marcados pela rebeldia e o não-alinhamento.
A diferencia e a mudança insinuaram-se nas novas vagas da ordem política mundial, na condição dos homens de letras, nas linguagens artísticas, na cultura de massas, nos costumes em geral.
Apesar de muitas inflexões terem-se mostrado incipientes e circunscritas, mesmo anedóticas, não deixaram de revelar-se suficientemente decisivas para destituírem convenções ancestrais e proporcionarem sentidos insuspeitos.
Sem transigir na rigidez autocrática e conservadora, também o salazarismo conheceu os seus dias críticos. No âmbito estritamente político, com a candidatura do general Humberto Delgado, a expulsão de Goa e o início da luta armada em Angola. No seio da Igreja, com a carta e o exílio do Bispo do Porto, entre outros conflitos inusitados. No plano dos apoios que se lhe tornaram hostis, com a crise académica de 1962.
A publicação de O Tempo e o Modo, em Janeiro de 1963, assinala o momento em que uma nova geração de católicos interpretou a novidade da ocasião que vivia e lhe conferiu expressão culta. Como acontece quando se julga seguir o sopro dos tempos e se vislumbram os seus frutos, a atitude assumida foi de abertura e pluralismo, sem obrigação confessional ou doutrinária.
O diálogo surgiu, então, como programa e talismã. Em nome da necessária dialéctica e do debate em torno de uma mesa redonda, propunha-se a prática de uma subtil orientação geral de fundo, pois a interlocução enjeita o argumento de autoridade, ao mesmo tempo que reclama a racionalidade compartilhada, a igualdade entre pares, a abertura à diferença, o reconhecimento da falibilidade própria.
No contexto cultural e político português fechado e antitético, o propósito dialógico definia, só por si, uma terceira via política e cultural. A abertura facultada pela revista de pensamento e acção permitiu que se insinuasse a possibilidade de um novo sentir político frontalmente oposto ao regime mas também distante do antifascismo de matriz comunista e simpatia soviética. O correr dos anos acabou, aliás, por conferir ao destaque dado aos artigos de Alçada Baptista, Mário Soares e Jorge Sampaio, na capa da edição inaugural, a dimensão de uma premonição simbólica. Já no plano da vida cultural, a valia do mensário não se cingiu a esboçar a hipótese de um novo ciclo, mas contribuiu profundamente para a definição de um panorama intelectual distinto, ao proporcionar uma tribuna estável e com alcance amplo a poetas, ensaístas e historiadores de grande mérito mas com circulação circunscrita e observação mediática reservada. Ainda no plano emblemático, o ensaio de Ruy Belo sobre Herberto Helder, que consta igualmente na primeira edição, ilustra esta inflexão, consolidada pelo número temático intitulado “Arte deverá ter por fim a verdade prática?”, motivado pela polémica que opôs Alexandre Pinheiro Torres a Vergílio Ferreira. Também a latitude das referências internacionais se alargou, desde logo com a tradução de pensadores pouco habituais na imprensa da época, encetada com artigo de Paul Ricoeur chamado igualmente ao frontispício datado de Janeiro de 1963. Sem perder o sentido do combate contra a infecta situação política e social portuguesa, mas galgando a dicotomia ideológica que o acompanhava, o ambiente intelectual viu-se, nas páginas de O Tempo e o Modo, composto por autores que transitaram da condição de homens e mulheres com presença periférica a figuras maiores da cultura portuguesa.
O alento primeiro de quem fundou O Tempo e o Modo residia numa vivência do catolicismo inspirada pela revista Esprit, criada por Emmanuel Mounier, potenciada pela expectativa depositada no Concílio Vaticano II que iniciara os seus trabalhos em Outubro de 1962. É de sublinhar que a revista francesa, que definiu o personalismo como doutrina própria, mostrou-se invariavelmente adversa a qualquer atitude conservadora pois sempre se concebeu como órgão de afrontamento à desordem estabelecida, consigna comum ao periódico português, que tudo pretendia sujeitar à crítica da disposição civilizacional vigente. Já o Concílio convocado por João XXIII representou um esforço vigoroso da Igreja para compreender o mundo seu contemporâneo e tentar responder-lhe em debate franco. A liturgia abraçou, então, as línguas vernáculas, o Terceiro Mundo ganhou presença, a rigidez hierárquica e dogmática conheceu alguma moderação, os bispos e os leigos mereceram relevância, o ecumenismo alcançou novas expressões. A edição em língua portuguesa de Concilium, Revista Internacional de Teologia, promovida por católicos de esquerda, ficou como testemunha do ânimo e da esperança suscitados pelos ventos conciliares.
Volvido um lustro de edições, o gládio da contestação e do dissídio estendeu-se ao seio do próprio periódico. Ao passar a ser redigido pela geração de universitários da segunda metade dos anos de 60, que substituiu a do início do decénio, O Tempo e o Modo perdeu as referências confessionais e enveredou por perspectivas políticas marcadas pelo gauchisme francês, a esquerda italiana, a New Left americana e a Revolução Cultural chinesa.
Embora tenha reavivado a atitude de oposição ao regime, ao republicanismo tradicional e ao marxismo soviético, além de conservar alguns dos interesses que haviam configurado o caminhar do mensário, como a atenção prestada à política e à cultura norte-americanas, a nova linha geral mostrou-se particularmente atenta ao confronto cultural, à crítica do quotidiano, ao conflito sino-soviético e ao debate teórico revolucionário internacional. A passagem, com a Nova Série, para um modelo editorial mais apelativo, com artigos curtos e uma linguagem gráfica caricatural, acabou por fazer convergir conteúdo, forma e desígnio.
Já a terceira metamorfose da evolução programática de O Tempo e o Modo não resultou de uma cisão com o passado mas, antes, do domínio exclusivo de uma das suas tendências recentes, simultaneamente maoista e partidária. Ficou enunciada nas páginas iniciais da edição de Janeiro de 1973, em que a redacção – e o suposto leitor que a supervisionava – procedeu à revisão crítica dos dez anos de publicação do título, ao mesmo tempo que afirmava, em nome da ideologia progressista que tinha por única, a ruptura com a ambiguidade e o eclectismo do início da Nova Série. A revista converteu-se, então, num órgão de combate político e ideológico em que argumentos e consignas se entrelaçaram contra o reformismo dito revisionista, as antigas e novas figuras da Seara Nova, a participação nas eleições marcelistas, e, no âmbito internacional, a favor das letras e da política externa chinesa.
Após o 25 de Abril de 1974, a percepção de que a revolução estaria na ordem do dia e o pressuposto de que a criação de um novo partido proletário seria indispensável ao seu sucesso levaram O Tempo e o Modo à propaganda da chamada revolução democrática popular e à identificação clara com a sua suposta expressão organizativa consciente.
Aplacada a incerteza geral e conduzido o movimento político à sua dimensão partidária, a revista conheceu a derradeira edição, com o número 126, em Setembro de 1977.
Verificou-se com O Tempo e o Modo o que é muito frequente nos periódicos com uma existência relativamente longa: sob um mesmo título e, neste caso, também uma numeração única, encontramos revistas distintas, com programas e redacções sucessivas.
Se o título ganha prestígio nos anos iniciais e as condições para a criação de novos periódicos se mostram adversas, como o foram durante o salazarismo e o marcelismo, a possibilidade de conquista interna e de transmutação programática advém elevada.
A esta luz, circunscrever a história de O Tempo e o Modo a um dos seus ciclos seria proceder à sua mutilação e, também, empobrecê-la, pois a revista é um testemunho fundamental da irreverência do seu tempo tanto na fase de inspiração católica, ensaística e literária, como nos períodos que se lhe seguiram que se distinguiram pela riqueza e complexidade das transformações culturais e políticas dos finais da década de 60 e pela radicalização política que antecedeu e, sobretudo, acompanhou a reposição da democracia. Em cada um destes três momentos, tão próximos e tão distantes, as páginas do mensário cristalizaram a sua circunstância de forma eloquente e com expressão nacional.
Nota: A revista O Tempo e o Modo publicou três cadernos: “O Tempo e o Modo do Brasil”, em Junho de 1967, com a colaboração local de Adolfo Casais Monteiro e Jorge de Sena; “O Casamento”, de Março de 1968, que foi apreendido pela Censura; “Deus o que é?”, de Setembro de 1968, com título e coordenação de Helena Vaz da Silva. Estes cadernos não se diferenciam, no seu teor geral, do padrão das suas edições temáticas, pois consistiram um expediente destinado a evitar a censura prévia. A esta luz confessa, estas três publicações autónomas foram objecto, no presente sítio, do mesmo tratamento dispensado à informação contida no conjunto das edições da revista, pelo que constam nos respectivos índices.
Luís Andrade