Um Expoente do Jornalismo Empenhado

O Suplemento Literário e Ilustrado d’A Batalha representa um ponto alto na fileira de publicações político-culturais anarquistas e, ao mesmo tempo, uma sua concretização singular e não mais renovada no espaço de língua portuguesa – num género que perdurou ao longo do seu século.

Editou-se em Lisboa entre Dezembro de 1923 e Janeiro de 1927 com uma rigorosa periodicidade semanal, saindo para as bancas, quiosques e ardinas sempre às segundas-feiras, cedo de manhã.

De facto, a primeira observação que um analista pode fazer sobre esta colecção é a da sua rigorosa regularidade, tanto no aspecto imagético que apresentava e na estrutura da paginação – somente com pequenas inovações tipográficas em cada novo ano – como no cumprimento exacto da sua cadência de saída, a despeito das turbulências políticas da época: os movimentos sediciosos militares de 18 de Abril de 1925, de 3 de Fevereiro e de 28 de Maio de 1926, ou os perigos representados pela Cruzada Nun'Álvares ou pel’”A desagregação das forças políticas”. Apenas a revolta antiditadura de 3-7 de Fevereiro de 1927 e a repressão que se lhe seguiu calaram a sua voz definitivamente.

O quadro redactorial do Suplemento era praticamente comum ao das restantes publicações da editorial d’A Batalha, ou seja, o jornal diário, os pequenos livros editados esporadicamente (por exemplo, a colecção “A Novela Vermelha” ou o Almanaque para 1926) e, por último, o magazine quinzenal Renovação que saiu entre Julho de 1925 e Junho de 1926. É plausível admitir que certos textos inicialmente destinados a um destes títulos acabassem por ser publicados em outro suporte, por razões de oportunidade ou de conteúdo.

Foram seus principais redactores e colaboradores Ferreira de Castro, Nogueira de Brito, Mário Domingues, Jaime Brasil (entretanto também presidente do Sindicato dos Trabalhadores da Imprensa), Adolfo Lima, Ladislau Batalha, Arnaldo Brazão, Bento Faria, José Carlos de Sousa (o porta-voz do grupo anarquista “O Semeador” e então presidente da Universidade Popular Portuguesa), Julião Quintinha, Jesus Peixoto, Alfredo Marques, Cristiano Lima, Eduardo Frias, mais raramente David de Carvalho, Roberto das Neves ou Vasco da Fonseca, e, nas ilustrações, Stuart Carvalhais e Roberto Nobre.

“A voz que clama no deserto” é a de um cronista assíduo desta folha, talvez uma pena escondida de Jaime Brasil. Também o intrigante e indecifrável pseudónimo “Abilos” (ou “Àbilos”, como alguma vez se grafou) é um autor oculto que subscreve numerosos “sueltos”, aforismos e alguns artigos. Pode conjecturar-se que se tratasse do jornalista profissional António Pinto Quartim que assegura a chefia da redacção, corrige a prosa de terceiros, decerto escreve alguns editoriais não-assinados, e é, desde o início, o grande animador desta aventura; porém, contra essa hipótese milita o facto de ter cessado a função em Julho de 1926 e tal assinatura persistir ainda nos tempos seguintes (como aliás a de Ferreira de Castro). As ásperas discussões acerca da atitude perante o golpe militar da “Revolução Nacional” haviam levado então Quartim a abandonar o seu posto, juntamente com o afastamento de Castro, Brasil e Frias, acusados internamente de “carreirismo” por alguns radicais.

A folha é subintitulada “Suplemento literário e ilustrado” (tendo perdido o “e” a partir do Ano II). O adjectivo “literário” refere-se à característica de, embora anexa a um periódico noticioso, não lhe interessarem propriamente as actualidades do momento, mas antes a qualidade e reflexividade do texto, embora sobre o soclo de temas muitas vezes em debate na opinião pública portuguesa ou estrangeira. Nesse sentido, “literário” é compreensível e adequado, mas sem perder a noção, por um instante sequer, de que A Batalha se assume sempre como um instrumento de combate de ideias e de posições contrapostas na cena política e social. Sobre a base dos analíticos aqui elaborados, podemos considerar que cerca de 30% das quase 3 mil peças que o Suplemento publicou ao longo da sua existência se inseriam naquela categoria então muito referenciada de “crítica social”, enquanto quase outro tanto dava conta de realidades e projectos emancipatórios das classes subordinadas, incluindo aqui assuntos associativos, reivindicativos ou protestatários. Muito mais atrás mas, ainda assim, em posição de relevo (com cerca de 15% do total), inseriram-se matérias educativas de diversos géneros. E em lugares menores (sempre abaixo dos 10%) surgiam temas de crítica às políticas estatais, à ordem religiosa e às práticas económicas do patronato.

Quanto ao “ilustrado” figurando no cabeçalho, ele refere-se mais a uma intenção de comunicação com os leitores que também usassem o grafismo como código significante de transmissão de ideias e valores, não devendo pois limitar-se à linguagem escrita e assumindo deste modo um dos pressupostos da corrente estética modernista. A realização ficou aqui, porém, um pouco aquém do desejado. Ou foi talvez a clareza dessa insuficiência que terá suscitado na equipa editora a iniciativa posterior do lançamento da revista Renovação. Em todo o caso, se no jornal diário se inseriam já com frequência fotografias ou zincogravuras, no Suplemento elas dividem-se nestas principais modalidades: desenhos ilustrativos das temáticas privilegiadas pela redacção; retratos de personalidades da cultura ou do movimento social; fotografias artísticas (de esculturas, monumentos ou paisagens); mais raramente, desenhos ou fotografias de acontecimentos históricos ou de actualidade.

Como folha cultural e de ideias, o Suplemento dedicou muitas páginas: à dignificação do trabalho, estigmatizando a sua exploração e opressão social; à chamada crítica social de costumes (festividades, álcool, mendicidade, gorjetas, touradas, futebol, etc.); à saúde, higiene e conselhos práticos para a vida quotidiana; à crítica de arte, musical e literária; à publicação de contos, poesia, aforismos, peças teatrais e evocação de grandes figuras universais (Tolstoi, Zola, Anatole France, Puccini, Lénine, Gorki, Gandhi, Unamuno, Tagore) ou de vultos nacionais assinaláveis (a actriz Ângela Pinto ou o anarquista Ávila); a página 7 continha em exclusivo “O que todos devem saber: Aproveitemos os nossos momentos de descanso para nos instruirmos um pouco” (com variadíssimos contributos de cultura geral); à excepção das derradeiras edições, a última página (a 8) foi sempre dedicada às crianças e adolescentes com a secção “Chico, Zeca e Cª” (contendo pequenos contos, adivinhas, jogos, peças para recorte e colagem, etc.); e, last but not least, sobre o papel social da mulher (a sua importância na educação, contra a prostituição e as modas, com dois controversos inquéritos feitos sobre a sua sindicalização e concorrência com os homens no trabalho). É, de resto, fundamentalmente sobre este tema que se centram as últimas edições do Suplemento, talvez porque os tempos da luta operária tivessem já entrado em franco declínio.

O estilo irónico e mordaz de alguns dos seus textos – muito presente no comentário à actualidade política nacional – retrata-se bem no cartaz anunciador do lançamento do Suplemento, que rezava assim: “ALTO! EM NOME DA LEI É intimada toda a população a ler às 2ªs feiras o Suplemento literário de A Batalha”, com a caricatura ameaçadora de um “cívico” de casse-tête na mão.

João Freire