A juventude do mundo
Cadernos da Juventude tornaram-se um marco na história cultural e política do neo-realismo embora não tenham conhecido qualquer leitor, pois foram apreendidos na tipografia e destruídos, de seguida, no pátio do Governo Civil de Coimbra.
Joaquim Namorado deixou registada a novidade que a publicação trazia consigo: “é no prefácio de Cadernos da Juventude (...) que as coordenadas do neo-realismo se apresentam pela primeira vez em bloco: a defesa de uma arte social, enraizada nas realidades nacionais, realista, anti-subjectivista e anti-naturalista, cujo fundamento ideológico seria um racionalismo moderno”.
A edição suprimida firmaria, pois, a identidade programática dos seus autores, jovens universitários movidos pelo desejo de promoverem uma cultura conforme à ideia de futuro que os animava e à missão em que se sentiam investidos, ambas situadas muito para além da intenção confessa de europeização da vida mental nacional, pois era a expectativa da cidade nova, capaz de instituir a satisfação dos grandes desígnios humanos, que caracterizava o ambiente demiúrgico em que sentiam mover-se.
A esta luz auspiciosa, é legítimo discernir no título escolhido – réplica de Les Cahiers de la Jeunesse, que Paul Nizan e Luc Durtain dirigiam desde Junho de 1937 – o elo premente que uniria os intelectuais portugueses com menos de trinta anos à metafórica juventude do mundo alvorada pela Revolução Russa de Outubro de 1917. É, aliás, de recordar que o boletim da Federação das Juventudes Comunistas Portuguesas ostentou, pouco tempo depois, o mesmo título.
No ensaio, na novela, nos quatro poemas, no inquérito e nos dois desenhos publicados, encontramos nos Cadernos da Juventude o retrato de uma orientação cultural suficientemente esclarecida e alentada para se impor no debate ideológico, nas letras e nas artes portuguesas durante os decénios que se lhe seguiram. Manuel Filipe argumenta a favor da missão do intelectual politicamente vinculado e contra os homens de cultura que advogavam o uso autónomo e livre do espírito. Frederico Alves denuncia a miséria e o sofrimento dos camponeses pobres. Joaquim Namorado canta o vigor do quotidiano operário e fabril. Manuel da Fonseca compunge-se face ao sofrimento de quem trafica o corpo. Mário Dionísio proclama o desejo de se sacrificar por um desígnio maior. Políbio Gomes dos Santos versa diferentes cambiantes da experiência e consciência humanas. A resposta ao inquérito sobre “quais as ideias que em embriologia mais interessam à juventude de hoje”, em que Abel Salazar critica o vitalismo, tido por arcaico e metafísico, e faz a apologia do neo-positivismo e da caracterologia, transporta consigo a aura de uma figura tutelar da geração anterior que se distinguira por unir a intransigência cívica à difusão científica, bem como a expressões da arte social.
Igualmente no âmbito da estruturação orgânica do movimento neo-realista, os Cadernos da Juventude constituíram uma súmula precoce, não só por terem sido editados em Coimbra, onde a actividade periodística da nova geração se manterá centrada durante décadas sucessivas, mas sobretudo por terem reunido, nas escassas nove peças publicadas, se considerarmos também os desenhos de António José Soares e de Fernando Namora, autores destinados a tornarem-se referências capitais do movimento, originários também de Lisboa, do Alentejo e do Porto.
Resulta, hoje, óbvio que a apreensão dos Cadernos foi um gesto inconsequente, como é próprio de quem supõe poder interditar entusiasmos alheios profundos. Aqueles que ficaram momentaneamente privados da oportunidade de ler os textos de Namorado, Dionísio ou Políbio depressa vieram a encontrar os seus escritos em periódicos como Sol Nascente, Altitude, O Diabo e, de seguida, Vértice, bem como não tardaram a ter ao seu dispor as obras impressas de quem vira o órgão colectivo inaugural consumido pelas chamas ateadas no Governo Civil, na Alta de Coimbra, ele próprio destinado, poucos anos volvidos, ao fogo e às cinzas.
A supressão dos Cadernos da Juventude não vingou, sequer, nos estritos limites da sua apreensão. Alguns exemplares – um, dois ou três, segundo as versões existentes – foram subtraídos à investida policial, nomeadamente aquele que chegou à Biblioteca Municipal de Coimbra, onde Carlos Santarém de Andrade tomou a iniciativa, transcorrido meio século, de o reeditar em fac-simile na mesma tipografia e com recurso a matéria-prima similar.
Nos sombrios bastidores censórios, restaria um outro original, o dos Serviços de Censura à Imprensa, guardado nos arquivos do Palácio Foz.
Ora, é este espécime, a seu modo inédito, que agora reproduzimos, com o consolo próprio de quem exerce a justiça mítica atribuída ao acto de escrever a História. No caso, a satisfação de tornar, por fim, os Cadernos da Juventude universalmente acessíveis.
Luís Andrade