Os equívocos neo-realistas
Ler. Jornal de Letras, Artes e Ciências, mensário editado pelas Publicações Europa-América, entre Abril de 1952 e Outubro de 1953, representou uma síntese entre o jornal cultural, atento ao noticiário literário e artístico, a revista, preenchida por artigos de fundo e de crítica, e o boletim editorial, dado ao inventário de publicações recentes, formato em que o título havia, aliás, conhecido a sua origem.
A orientação preconizada e cumprida dirigiu-se no sentido de “acolher todas as correntes literárias e estéticas” e de “recolher a colaboração de todos os valores verdadeiramente representativos e significativos”, com a finalidade de aproximar escritores, artistas, editores e público.
A leitura do “único jornal literário que se publica entre nós” leva a verificar, com facilidade, que a vida cultural da época pulsa nas suas páginas. Entre os colaboradores regulares encontram-se figuras maiores das letras, como Ferreira de Castro ou José Régio, acompanhados por um conjunto amplo de autores neo-realistas, com destaque para Mário Dionísio, Carlos de Oliveira, António Ramos de Almeida, Vergílio Ferreira, António José Saraiva e Fernando Lopes Graça, mesclados com escritores de índole muito distinta, como António Quadros, Delfim Santos, José Marinho, Luís de Almeida Braga e Joaquim Paço d’Arcos.
A par das matérias literárias, com uma atenção inusual às letras femininas, que ocuparam o corpo principal do mensário, este também atendeu meticulosamente à crítica de artes plásticas, de teatro, de música e dança, assinadas por nomes tão conceituados como Adriano Gusmão, Luís Francisco Rebelo, João de Freitas Branco ou Tomás Ribas. O noticiário cultural internacional, predominantemente de origem francesa, mostrou-se igualmente regular e pormenorizado. A secção “Bibliografia portuguesa” deu a conhecer o movimento editorial nacional organizado tematicamente. Entre os domínios citados em subtítulo, as ciências revelaram ser o parente pobre, apesar da colaboração de Orlando Ribeiro e das traduções de cientistas como Jean Rostand merecerem destaque.
Embora a redacção tivesse insistido, em vários editoriais, na assunção de uma atitude de isenção jornalística, alheia a qualquer ideário próprio, o teor publicado situou-se claramente no âmbito das referências culturais progressistas, de Victor Hugo a Jorge Amado, malgrado também ter inserido peças de sinal contrário, como o elogio de António Macedo de Papança, Conde de Monsaraz, e do salão de homens de letras integralistas que promoveu na Alta de Coimbra.
Na origem de Ler estiveram Francisco Lyon de Castro, proprietário, com o seu irmão Adelino, das Publicações Europa-América, e Fernando Piteira Santos, que desempenhava funções de orientação literária na editora. Ambos haviam deixado o PCP, que os acusava de titismo, entre outros anátemas, ao mesmo tempo que se conservavam oposicionistas firmes à ordem salazarista, nomeadamente no plano do confronto cultural e da divulgação do saber.
Reconhecer em Piteira Santos o artífice de Ler é um dado adquirido. Por um lado. já desempenhara funções similares na fase final do semanário O Diabo, pelo que dispunha de um conhecimento apurado do ofício jornalístico e uma percepção próxima do ambiente literário e artístico nacional. Por outro lado, a vontade de liderança foi um dos traços mais salientes na sua personalidade, patente tanto no seu percurso pretérito, no Partido Comunista e no Movimento de Unidade Democrática, quanto no seu trajecto posterior, como dirigente da Frente Patriótica de Libertação Nacional.
Ainda que os propósitos declarados de um vulgar periódico literário não o deixassem supor, Ler acabou por ocupar uma posição muito relevante no trajecto político-cultural do neo-realismo, ao expor o âmago equívoco de um movimento literário que relevava menos de uma orientação artística ou estética do que de pressupostos ideológicos e políticos.
Como Pacheco Pereira vincou, o contexto político internacional de afrontamento entre os dois blocos saídos da II.ª Guerra Mundial, que se confrontavam na Coreia, e a repressão particularmente violenta desencadeada pelo salazarismo após as eleições presidenciais de 1949, contribuíram para o extremar de posições em que os pressupostos da frente ampla e envolvente que a publicação praticava eram enjeitados.
Por outro lado, e de acordo com João Madeira, a afirmação de um periódico estritamente cultural dirigido por dissidentes comunistas capazes de reunir intelectuais de tendência marxista configuraria, em si, um gesto político de distanciamento heterodoxo.
Em concomitância, muitos dos artigos publicados pelos autores neo-realistas versaram questões específicas do trabalho literário e artístico, directamente associadas à sua natureza e ao seu mérito. Tomavam, assim, partido no conflito latente que atravessava o movimento que integravam, ao centrarem as suas reflexões no “interior do laboratório” das letras e das cores, como aconteceu com Mário Dionísio, ou no “elogio do estilo”, como encontramos em textos de Carlos de Oliveira, acompanhadas, em ambos os autores, com a denúncia de “certa teorização que postulava levianamente o desprezo da forma” e que “exigia de cada romance, de cada poesia que gritassem verdades como punhos”.
Estes artigos contribuíram certamente para que a resposta às preocupações explanadas, vistas como afins às do “formalismo” repudiado e apartadas dos conteúdos sociais e políticos tidos por pertinentes, depressa passasse do registo surdo para o domínio da discussão frontal, ao dar lugar a uma viva e longa polémica entre neo-realistas, a que o artigo “Humanismo e ciência”, publicado por António José Saraiva na segunda edição de Ler, não foi alheio.
Ainda coetânea com os breves dezanove meses em que o periódico de Francisco Lyon de Castro e Fernando Piteira Santos foi publicado, encontramos uma terceira frente de conflito entre neo-realistas desencadeada pela Carta dos “Amigos da Vértice”, de 25 de Agosto de 1952, que colocava em questão a orientação da revista que dava expressão pública ao movimento e que visou alterar a sua estrutura directiva.
No plano da reacção estritamente partidária, Ler foi objecto de denúncia e repúdio no Avante!, em artigo intitulado “’Ler’ serve os objectivos do fascismo. Lutemos contra a penetração ideológica americana!”, em comunicados das direcções regionais comunistas de Lisboa e do Norte e em cartas intimativas dirigidas a colaboradores do periódico, nomeadamente a Mário Dionísio, a João José Cochofel e a Fernando Lopes Graça.
Como se pode depreender desta resenha sumária, o papel que Ler desempenhou na história do neo-realismo não resultou da originalidade das questões colocadas nas suas páginas, mas consistiu, sobretudo, na condução das ambiguidades programáticas do movimento à condição de aporias paradoxais: um movimento literário e artístico sem desígnio estético definido, que se vê obrigado, por isso mesmo, a recapitular considerações elementares sobre o trabalho com as palavras, as formas e as cores; uma corrente cultural sujeita ao vocativo da “arte útil” que contrasta representações sobre a sua valia, da vaga insinuação ideológica à literatura de combate político explícito; um discurso assente na dupla linguagem partidária e frentista que percorre a escala que vai da singela reclamação de responsabilidade social aos escritores à intransigência própria do ditame ortodoxo.
Em abono da verdade, diga-se que a equivocidade referida remonta à própria definição de realismo socialista, expressão com termos entre si dissonantes, como facilmente se depreende da leitura de Pour um Réalisme Socialiste, de Aragon, que, contudo, entusiasmou Joaquim Namorado, o escritor marxista conimbricense que deu nome ao “neo-realismo”.
Quando o crítico José Pedro de Andrade aborda, na derradeira edição de Ler, as questões estilísticas colocadas por Uma Abelha na Chuva, de Carlos de Oliveira, cuja publicação fora anunciada havia dois meses, somos levados a verificar que os argumentos debatidos no mensário excedem o simples plano discursivo pois estão claramente vertidos na produção literária publicada. Por outro lado, se considerarmos que os desenhos da prisão, de Álvaro Cunhal, datam da mesma época, não podemos deixar de verificar que o neo-realismo constitui uma corrente literária e artística suficientemente fracturada para que o autor de Até amanhã, camaradas, que esteve entre os que o originaram e fundamentaram ao longo de toda a vida, incluindo na polémica citada, raramente surja referido como autor do seu cânone.
A cisão ocorrida a propósito da Ler, que originou a “purga dos intelectuais”, tornou, pois, evidente que não houve um só neo-realismo, mas vários, de tal modo as suas concepções e obras se revelaram distintas entre si.
Ora, este dissídio estendeu-se, num movimento que nunca deixou de considerar a construção da memória própria como parte fundamental da sua identidade ideológica, à elaboração de diferentes e contraditórias representações identitárias que foram consolidadas durante décadas, umas mais literárias e artísticas e outras mais claramente de combate em nome do conteúdo e da pragmática políticos.
O regresso a Ler, ao teor, à história e às circunstâncias que envolveram o mensário, possibilita, agora, que cada um dos seus leitores actuais aceda directamente quer à percepção da complexidade sincrética da difícil conjugação entre letras, arte e política revolucionárias quer aos termos e às incidências concretas dos enleios que teceram o novo realismo.
Luís Andrade